terça-feira, 31 de agosto de 2010

Recado para "o" homem

Homem,
Converse com ela num ritmo ponderado, um pouco acima do lento, bem abaixo do apressado.
Diga palavras doces e sensíveis, daquelas que não se compram em supermercados.
Experimente elogiá-la com os cabelos levemente bagunçados ou naquele dia de chuva em que ela molhou os calçados e ficou absolutamente deselegante.
Pegue-a pela mão num momento inesperado, como na fila do buffet ou na garagem de casa.
Dê flores, mas não faça disso um lugar comum. Mude as cores e os tipos, também. As rosas para pedir desculpas. Uma orquídea para se insinuar. Girassóis para lhe desejar sorte.
Chame-a para jantar numa segunda-feira à noite. As sextas e sábados são tão cheias de clichês. Nesses dias, prepare você o prato preferido dela.
Seja paciente com as crises dela. Aos 20 por não saber o que fazer da vida. Aos 30 por ver as primeiras rugas chegarem. Aos 40 por ser achar madura demais. Todos os meses por enfrentar a ebulição hormonal.
Não brigue. Não ouse brigar.
Chame-a para dançar assim mesmo, no meio da sala, enquanto ela levanta para lavar o rosto. Dance animadamente e com paixão.
Olhe-a com a ternura do primeiro encontro. Nunca esqueça do primeiro encontro.
Escolha bem os adjetivos para apelidá-la ou deixá-la encabulada. Use-os com moderação.
Não tente entendê-la 24 horas por dia, mas se esforce para desvendá-la por completo durante pelo menos dez minutos. Suas nuances, tons de voz, gestos e sinais.
Não espere dela menos amor do que você tem para oferecer. Ela sempre será mais plena de certezas na relação do que você.
Acalme-a e deixe-a sorrir. Junte-se a ela nos momentos de farra. Procure presentes que ela jamais sonharia em receber.
Homem,
O segredo é deixá-la nas nuvens. E é voar junto com ela.
Boa sorte!

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O amor num piscar de olhos*

Você ainda me ama? perguntou ela, num lapso de insegurança, em meio a trincheira de lembranças que começara a cercá-la há poucos minutos.
Mas é claro que sim, baby. Que bobiça é essa agora?
Preciso saber. Você sabe que gosto de ter certeza das coisas às vezes, ponderou, do alto da maturidade dos seus 22 anos.
OK, mas lembra que todo dia eu te digo que te amo? Sempre...
É, mas nessas horas não escuto. E soa como quase uma obrigação. Prefiro que você fale às vezes, mas que seja verdadeiro.
Tá bom, linda. Você sabe que eu jamais mentiria para você. Te amo, sim. De verdade.
Ela piscou os olhos com força, como que querendo prever o que o futuro reservaria a eles. Tá, agora era amor. Ontem fora amor. Amanhã seria amor. Mas e depois, para onde as coisas iriam? Mobiliariam uma casa juntos? Modificariam suas rotinas para se adequarem um ao outro? Escolheriam juntos o nome dos filhos? Comprariam um pacote de férias pra Disney no aniversário do caçula? Passariam a lua de mel em Paris?
Queria saber, exatamente, onde moravam as certezas do amor.
Se no cafuné que ele lhe fazia quando ela estava quase dormindo ou quase acordando. Se no abraço firme diante do caos que lhe invadia vez ou outra. Se na risada de cumplicidade escondida no cantinho esquerdo da boca. Se nas palavras meigas que trocavam quando estavam longe. Se no prazer carnal da hora do reencontro.
Ele dizia que tudo era verdade e ela sabia que era, sim. Então, qual a razão dos questionamentos que não lhe permitiam enxergá-los juntos ainda que o amor ficasse sempre ali, inerte? Se conheceram no limiar entre o inverno e a primavera e isso bastava para entender que era um sentimento forte, sem inclinação para a dúvida. O inverno do frio, a primavera da paz. Os dois.
Amor, você ainda está aí ou tá viajando? interrompeu ele.
Tô aqui, sim. Ou não. Quem sabe...
Você e suas esquecitices. No mínimo tá pensando no que vamos fazer para o jantar.
Ah, sim, o jantar...
E de novo piscou os olhos com força. E de novo pensou sobre os dois, na trincheira das lembranças que sempre carregava nas costas. E de novo teve medo, dúvidas, inseguranças daquela menina de 22 anos. Foi aí que lembrou ter 40. Foi aí que se deu conta de que pouco ou quase nada havia mudado.

* Ou: Das dúvidas que perseguem o amor

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Replay

Acompanhava o novo romance da ex em um minuto a minuto na Internet.
O cara não se importava em preservar a privacidade dos pombinhos.
Um dia era foto no Orkut, outro dia era comentários no blog ou frases apaixonadas no Twitter e no MSN.
Até aí, preferia não questionar. Cada um tem o seu jeito de amar, não é verdade? E se ele mesmo às vezes falava demais, o que esperar de um pseudo-inimigo que mostrava claros sinais de instabilidade emocional?
Mas uma coisa sim o incomodava de verdade. A falta de criatividade do amor. Sim, parecia que ele estava assistindo a um replay do que vivera instantes atrás.
Fazia com ele as mesmas coisas que faziam juntos.
Todo dia pedia que ele lhe buscasse na natação, pontualmente às 9h.
Depois, levava-a para o trabalho. Às 13h, almoçavam juntos. O cardápio também não variava muito.
De noite, viam filme, tomavam cerveja, faziam pizza, discutiam a relação.
Nos fins de semana iam para a praia, Mercado Público, casa dos pais dela. Passeavam com os cães e vez ou outra encaravam uma balada mais pesada.
Por que era tudo tão igual?
OK, fosse como fosse, já sabia para onde a história iria.
Um dia ele esqueceria de buscá-la. Ela iria surtar. Dispensaria o almoço porque acordaria de ressaca. Ela ia surtar de novo. Ia preferir os amigos para o filme ou a cerveja. Novo surto. Cansaria da praia com ela porque não conseguiria não olhar para as outras. Mais um surto. Dormiria e roncaria a noite toda. "Ah, não dá mais". Passaria as festas de fim de ano em outro estado. "Agora chega".
É, falta criatividade no amor. Ou será que falta amor?

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Desculpa

Desculpa. Um sentimento só vai embora quando a gente pede pra ele ir.
Mais do que isso. Um sentimento só vai embora quando a gente mata, enterra, lacra.
É hora de te pedir desculpa porque estou matando o meu sentimento. Eu o guardarei em um lugar só nosso, com a certeza de que tê-lo deixado nascer foi importante pra mim, pra ti e pra nós. Com a certeza de que ele precisa ir rápido, depressa, sem olhar para trás.
Desculpa por não conseguir falar e por não me fazer entender. Há silêncios que são necessários em qualquer diálogo. Há silêncios que falam mais do que eu conseguiria expressar. O meu te pede perdão e pede perdão a mim. Lamenta e condena. Adverte e teme. Mas é denso e real. E é muito mais vivo do que foram nossas melhores conversas até hoje.
Me desculpa por ir embora assim, sem avisar direito. Por trancar a porta sobre mim e separar a nós. Desculpa por ter tanta certeza e saber que é melhor assim. Desculpa por partir, mesmo permanecendo.
Agora eu vou porque já é hora. Sim, lacrei bem todas as portas. Não, não vou olhar pra trás.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O meu aviso*

Olha, eu não saberia nem por onde começar. Por isso comecei pelo clichê, assumindo minha completa incapacidade de ser categórica ao falar sobre esses sentimentos que moram em mim desde que você chegou.
O que você fez, afinal?
Quis me mostrar algo que eu precisava ver?
Quis me levar onde eu jamais teria ido sem a sua companhia?
Quis me ocupar diante do vazio que tomou os meus dias?
Quis me fazer rir da graça da vida?
Sim, acho que foi isso o que você fez.
E eu, tão cheia de frases feitas, de suspiros, de olhares prontos e medidos, resistente ao novo, ao diferente, me vi no claro pela primeira vez. Sem artifícios, sem artimanhas. Pura de uma forma que jamais pensei conseguir.
Lembra quando sentamos naquele piso molhado e passamos horas falando sobre como era bom correr tendo que se equilibrar para não cair? Você riu da minha inexperiência e confessou que vivia todos os seus dias assim, buscando um meio termo entre o andar reto e seguro e o andar arriscando-se, temendo, freando o passo a cada tropeço.
Eu compreendi cada uma das nossas diferenças, que são tantas, porque te assumi como uma das partes que me faltava. Porque sem o teu jeito de me fazer enxergar a vida, eu corria o risco de me perder outra vez.
Eu tinha tanta coisa para te falar, mas me perco no meio de uma história que parece não ter fim.
Porque nós dois sabemos o quanto tudo pode ter mudado.
E nós dois sabemos o quanto tudo ainda pode mudar. Basta um passo mal calculado no piso molhado. Basta um desequilíbrio de rota, um abalo, uma queda.
Eu só queria mesmo te dizer que tudo o que eu queria te dizer jamais vai ser dito. Você sabe bem porque.

*O título original desse post era "Tudo o que eu queria te dizer", mas descobri que esse é o titulo de um livro e de uma peça de teatro. Modifiquei.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A última mulher

A última mulher que Beto amara era independente demais para ele.
Ela tinha casa, pagava água, luz, telefone, fazia supermercado e o adotava de forma misteriosa.
Sim, ela permitia que Beto levasse as roupas para o armário dela vez ou outra, dormisse todos os dias no quarto que ela mobiliara, ajudasse nas tarefas domésticas, fizesse um jantar romântico regado a drinques intermináveis.
Beto tivera outras mulheres antes e depois dela. A situação se repetia como num ciclo, mas as personagens sempre mudavam. Ele não.

Beto era adotado e virava filho, amigo, irmão. Só não era parceiro porque não conseguia nunca estar ao lado de alguém. Só via a si. Só fazia por sí. Por isso era tão fácil mudar de casa a cada mudança de estação sem jamais construir algo sólido o suficiente para ser dele.

Beto sabia que era imaturo e que teria muitos rostos em suas mãos. Amava sempre como se fosse a última vez, mas não conseguia estar inteiro. Sempre deixava um pedaço de si. Sempre levava um pedaço de alguém. Nenhum desses pedaços tinha a capacidade de regeneração.

Em todos os aniversários, Beto vinha com o mesmo presente. As declarações de amor também eram idênticas. Ele não conseguia distinguir uma história da outra e assim conduzia uma vida em que a última era sempre a "mulher da sua vida". Até acordar e ver que não era. E atravessar o campo fértil que separa um grande amor de outro.

A última mulher que Beto amara descobriu porque conseguiu esquecê-lo sem sofrer quanto esperava. Porque ele era frágil demais para ser eterno. Porque ele era apenas um sonho. Porque ele não sabia ser de ninguém e adorava repetir enredos, diálogos, cenários.

A última mulher que Beto amara descobriu porque era parecida com as anteriores e porque era tão diferente daquela que veio depois. Porque conhecer Beto era quase como um aviso do destino, quase como uma manifestação das mentiras que ela cultivaria se não o desvendasse depois de tanto tempo dividindo tudo com ele. A última mulher que Beto amara deixou ele ir embora porque quis.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A força dos cinco verbos

Ele foi embora tantas vezes que não sabia mais qual era o seu lugar.
Se ao lado de quem amava,
Se ao lado de quem amara,
Se só, apenas.

Ele sabia de cor todos os seus medos e os temia justamente por serem seus.
Porque dentro dele tudo era brasa, tudo era fogo, tudo queimava,
Até o sopro frio que vez ou outra invadia seu íntimo, mas que acabava envolto pelo calor latente que habitava seus poros.

Ele precisou voltar para ver se a porta estava bem fechada,
Para ver se não havia esquecido algo dentro daquele cubículo insalubre,
Para certificar-se de que também as janelas foram cadeadas e lacradas com cimento, com força bruta.

Ele imaginou-se ali e lá,
Em voos imprecisos,
Em quedas intermináveis,
Mas via-se refeito e pronto.

Ele pensou nas circunstâncias em que a vida lhe impunha escolhas,
Zombou das coincidências,
Atirou-se no sofá,
E depois disso sonhou por longas e intermináveis horas.


*Nem lembra se olhou pra trás ao primeiro passo*

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O que sobrou em mim

Eu ouço a sua voz soando baixo entre a vibração tensa das paredes que por tanto tempo nos cercaram. Ela continua aqui, me atormentando sempre que me sinto frágil, como um rastro de lembrança e de mágoa que deixam a ferida aberta.

Muita coisa aqui dentro me traz você. O isqueiro esquecido. Todos os pregos e furos na parede. A sacada em que você permanecia inerte, opaco e calmo, inebriado pela solidão que sempre lhe caiu tão bem. A persiana que nos protegia. O cobertor que dividíamos em dias de um frio intenso e de um calor voraz.

Te vejo agora entre os cômodos, sorrindo de um jeito que ainda não decifrei, mas que por muito tempo me trouxe paz e guerra. Você caminha lentamente, toca nos móveis, ajusta lâmpadas, arruma a antena, senta na cama, deita e adormece. Eu apenas observo o tempo passar, aliviada quando me sinto forte e submissa quando vejo que não tenho qualquer domínio sobre ele.

Hoje, você esteve presente em todas partes da casa e em todos os cantos de mim. Como se o ritual ainda não estivesse completo. Como se faltasse uma última verdade. Como se as coisas que você deixou fossem te manter eterno. Como se a tormenta ainda não tivesse passado de vez. Como se sua voz ainda morasse aqui.

*Se eu cantar não chore não, é só poesia*