segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Aparência

Ela tinha um cheiro tão doce, que não consegui dormir na noite em que a vi de longe, com um vestido de cetim cinza e um sapato vermelho que me lembrou o da Doroty, d'O Mágico de Oz. Fiquei pensando nas lembranças que aquele aroma suave me trazia. Ora parecia o de uma flor da minha infância. Ora me lembrava alguma-coisa-qualquer que eu registrei em uma caixa preta do meu cérebro tão seletivo.
Era a mulher mais linda daquele lugar, sem sombra de dúvidas. E eu, com 26 anos recém completos, me julgava um ser desprezível para aqueles olhos sintomáticos. Aqueles olhos que não precisavam ser verdes nem azuis para serem os mais perfeitos de-todo-o-planeta-terra-e-marte-e-vênus.
Será que ela sabe o que me causou quando deixou aquele bilhetinho com letras garrafais diante do meu copo de whisky nacional? Imagina o quanto meu coração deu pulos? O quanto me senti perdido, confuso e babaca diante de uma situação que mais parecia um sonho da minha infância?
"Me encontre as onze da noite. Moro na primeira rua à direita, numa casa amarela com cerca marrom, número 83".
As referências eram suficientemente esclarecedoras, mas eu não apareci.
Fiquei com vergonha de que não fosse comigo. Aquilo não podia ser verdade.
Duas semanas depois, encontrei-a de novo, com o mesmo sapato vermelho e um olhar de quem tinha mais certezas do que eu e do que o resto do mundo. "Eu estava te esperando. Você não apareceu. Queria conversar. Você pode ir lá hoje?".
Pronto, agora eu tinha certeza.
Deixei que fosse antes pois ela fez questão.
Tomei uma, duas, três doses de whisky nacional. Não era o meu preferido. Era o mais barato. A quarta dose eu encarei sem gelo, pra tomar coragem de encostar um dedo que fosse no corpo mais lindo que eu já tinha visto na vida.
Encontrei Rebeca com uma camisola fina, dessas que mulher usa para seduzir.
Toqueia- com cuidado e sem pressa.
Senti algo diferente na superfície da sua pele.
Fui descendo minhas mãos pelas suas costas com um certo desespero. Seu corpo era coberto de cicatrizes. Não eram uma, nem duas. Eram dezenas delas, desenhadas com um zelo que eu jamais me permitiria entender. Havia marcas no abdomem, nas coxas, nos ombros, no peito, no glúteo. Tudo escondido pelo cetim do vestido cinza. Tudo escondido pela camisola que ela escolhera para me receber.
Quando a dominei por completo, não consegui entender porque ela fizera aquilo. Imaginei que projetou o próprio corpo como uma tela em branco, que precisava ser preenchida. Depois, pensei que ela queria se mutilar para se tornar uma simples mortal, o avesso da perfeição.
Durante anos pensei em Rebeca como um ser obtuso, quase indecifrável. Por que ela me escolhera? O que esperava de mim? De onde vinham suas marcas?
Voltei muitas vezes ao mesmo bar a fim de encontrá-la. Nunca mais a vi. Confesso que temi a sua imperfeição. Seu cheiro não mostrava suas cicatrizes. Seus olhos omitiam todo o seu mistério. Mas eu toquei a sua essência como nenhum homem jamais se permitiu se apoderar de uma mulher. Aquela era a essência da dor. Eram as marcas da sua vida.

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